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Notícias de um trânsito invisível

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Em São Paulo trânsito tem apenas um significado: carros. Carroceiros, ciclistas, pedestres, skatistas e usuários do transporte público são seres invisíveis. Na verdade, só são lembrados como aqueles que atrapalham o trânsito.

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Foto: cassimano. Alguns direitos reservados

Para a grande mídia o fato começa a existir quando ele existe oficialmente ou quando um grande meio de comunicação diz que ele existe. Antes de um dos dois ocorrerem o fato não existe, e um jornalista não tem nada a ver com isso.

Por coincidência – ou não – a cidade atingiu este ano, oficialmente, a marca de 6 milhões de carros registrados; atingiu também recordes de congestionamentos, segundo a medição oficial feita pela CET.

Os anúncios oficiais viraram notícia. Com a sequência de recordes de congestionamentos, havia, diariamente, pauta para preencher folhas de jornal. Coisa boa, já que os jornais sempre pretendem manter quentinha uma pauta de interesse de seus clientes (a classe média motorista). As matérias? Preguiçosas. Nada de buscar opiniões dissonantes, pesquisar se os tais congestionamentos acontecem em toda a cidade ou não… Reproduze-se o índice da CET, colhe-se frases de alguém da prefeitura, de dois especialistas e pronto. Dois dias depois, mais do mesmo. Uma semana depois, lá vamos nós: “tantos quilômetros de congestionamentos” é a manchete, no texto os dados oficiais e as possíveis causas, as posições de dois especialistas e da CET.

Os congestionamentos tão mencionados durante as últimas semanas são de carros. A CET é a Companhia de Engenharia de Tráfego, mas é responsável apenas pelo tráfego de carros, pelo tráfego de uma minoria. Essa divisão das responsabilidades do trânsito de São Paulo é, pensando bem, um espelho da realidade cultural de supervalorização do carro e da divisão artificial dos diferentes “trânsitos” em que vivemos.

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Foto: cassimano. Alguns direitos reservados

Num outro mundo, num mundo que existe independentemente da mídia e dos anúncios oficiais. Num mundo de fato, não num mundo de fatos jornalísticos. Num mundo que é invisível para a mídia, milhões de pessoas utilizam o transporte público e deixam as ruas mais livres para outras atividades. Não fossem os carros privados utilizarem todo este espaço público disponível.

No começo do mês, os usuários de ônibus do extremo sul da cidade cansaram de esperar pelo governo e pelo jornalismo e tocou fogo no circo. Não agüentam mais ficar até três horas parados no mesmo lugar e ninguém, a não ser eles próprios, se dar conta disso. Na “rádio que toca trânsito”, o protesto não virou notícia, apenas o congestionamento de carros virou [1].

Na zona oeste, os congestionamentos nos corredores preferenciais também estão próximos do limite da paciência de gente acostumada a ter muita paciência. Fotos como as desse artigo podem ser tiradas em qualquer dia, pela manhã, na Av. Francisco Morato. Mas os repórteres nunca estão lá, eles têm prioridades, como piscina de clube particular (ver “Sócios do Paulistano fazem mergulho coletivo para evitar o fim do ‘fundão'” – FSP, 10/03/20008).

Quem quiser ter idéia do tamanho do problema nos corredores de ônibus da periferia e não mora na região, pode ir até a Av. Dr. Arnaldo esquina com Teodoro Sampaio. Chegando por lá às 18h, basta memorizar o número de um ônibus, caminhar 15 minutos até a parada da Consolação com a Av. Paulista e esperar pelo ônibus que escolheu. Vai esperar cerca de 40 minutos e descobrirá que concentrar numa única parada quase todos os ônibus provenientes dos corredores da Rebouças, Dr. Arnaldo e Teodoro Sampaio é um desrespeito à inteligência coletiva.

Outra opção dentro do tal “centro expandido” é aparecer, no fim do expediente, na parada de ônibus da Av. Faria Lima com a Av. Rebouças. O observador sairá de lá com o mesmo pensamento: centenas de ônibus enfileirados num corredor e uma parada posicionada bem no cruzamento de avenidas enormes só pode ser coisa de especialista que não vai trabalhar de ônibus.

Feitos os exercícios, para se ter idéia do acontece nos corredores da Guarapiranga, por exemplo, basta multiplicar por três as situações observadas. Lembrar-se que a única alternativa, que é desistir da viagem de ônibus na metade do caminho e seguir quilômetros caminhando custa R$2,30. Lembrar-se que a humilhação mensal de ida e volta soma o equivalente a quase 30% do salário mínimo do trabalhador. Lembrar-se que isso acontece todo santo dia e que todos estes usuários e usuárias passam pelo constrangimento de pedir desculpas ao patrão pelo atraso (a saber, várias pessoas já perderam os empregos por freqüentemente chegarem atrasadas ao trabalho).


Foto: cassimano. Alguns direitos reservados

[1] Errata: Havíamos dito aqui que neste corredor a espera era de até 40 minutos, na verdade ela é de pelo menos 40 minutos.
PS 1. No cruzamento da Av. Rebouças com a Av. Faria Lima os carros não param no semáforo, utilizam o túnel milhionário, logo no andar de baixo da fila indiana de ônibus.
PS 2. Em vez do congestionamento de carros, Ricardo Sangiovanni e José Ernesto Credendio
destacaram o protesto na zona sul na reportagem “Protesto contra ônibus lento fecha via por 6 h” publicada na Folha de S. Paulo. Pena que ficou nisso, não houve nenhuma continuidade.

Written by panopticosp

março 18, 2008 às 11:48

Publicado em mídia, transporte

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9 Respostas

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  1. Os grandes jornais vão demorar muito ainda para criar um debate sério sobre o trânsito (se isso um dia acontecer). Os principais culpados são também os maiores anunciantes: indústria automobilística e construtoras.

    Zé Bozó

    março 18, 2008 at 14:13

  2. O poblema fica maió ainda dento dessas merda desses onibu minino. Lotado… E nóis que é véia tem de i di pé, por sacanagi de genti sem inducação, que muitas veiz finge que dromi pá num dá o lugá… E minhas perna dói!!!!

    A vó do Zé

    março 19, 2008 at 16:15

  3. […] buzinar não faz o trânsito andar” e por aí vai…. Teste: atenção com o ciclista Notícias de um trânsito invisível Bike Socorro Porto Seguro Esta entrada foi escrita por luddista e postada em 20 de março de […]

  4. Pena, mas não consegui achar o vídeo com o depoimento de uma usuária de ônibus durante o protesto. A fala dele, muito lúcida, passou ontem no “SPTV”, e me comoveu. Ela pedia, apenas e tão somente, para ter respeitado o seu “direito de ir e vir”…
    Dono do Panóptico, parabéns pelo blog!

    semcarro

    março 20, 2008 at 15:40

  5. Brilhante este post. Junta duas coisas que me incomodam demais: (1) a estreita – e altamente ideológica – visão de que os congestionamentos são criados por “outros” e “nós”, os automobilistas, somos as vítimas; e (2) a indigência de nossa mídia, que não é capaz de investigar, questionar, de enxergar além do que está no seu campo imediato de visão – e que não nos faz esquecer que, afinal, os jornalistas são, eles mesmos, automobilistas. De todas as “séries de reportagens” ao longo dos últimos dias sobre os recordes de congestionamentos de SP, o que mais espanta é que só são entrevistados automobilistas, como se quem anda de ônibus seja uma parte da paisagem, não sofre – ou pelo menos, não tem direitos, já que quem paga impostos são os automobilistas (outro clichê insuportável da classe “mérdia” propagado pela mídia). Uma exceção: a reportagem da TV Brasil (pública: será por acaso?) mostrando pessoas indignadas pegando ônibus hiperlotados em SP; particularmente, o depoimento de uma mulher, chorando ao dizer que perdeu parte do salário por conta dos atrasos no transporte. Em contraponto, a reportagem mostrava o secretário de transporte dizendo que isso era “eventual”. Será que esse país tem jeito?

    Henrique

    março 25, 2008 at 0:23

  6. […] Notícias de um trânsito invisível Notícia da SPTrans no site próprio. Dia 27/03, dois dias antes do início da nova […]

  7. […] Notícia da Sptrans Vigiar Notícias de um trânsito invisível Tarifa única de ônibus em SP, só pagando […]

  8. […] de novelas nos ônibus faz parte dos investimentos em transporte. Afinal, enquanto o sujeito mofa no ônibus, ele merece assistir a uma novelinha e algumas propagandas das Casas Bahia. E, claro, quando for […]

  9. […] artigo, Panóptico Tarifa única de ônibus em SP, só pagando adiantado, artigo, Panóptico Notícias de um trânsito invisível, artigo, […]


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