Panóptico

A missa da toalha úmida

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Você vai dormir e parece que tem um gato peludo preso na garganta – e pior, querendo sair? Seu filho sofre com mais uma crise respiratória? O seu nariz sangrou esta tarde? Metade do pessoal do escritório não para de coçar os olhos?

É difícil ter a dimensão dos problemas numa cidade gigante e variada. Pois a imprensa está aí para isso, para dimensionar e noticiar em massa o que é de interesse público.

Os hospitais estão lotados de crianças que não conseguem respirar? A imprensa está sempre atenta e, claro, vai investigar, aprofundar, trazer o debate à tona.

É hora de discutir o clima insuportável? Claro. E o que vemos? A santa missa. Antigamente rezada anualmente, atualmente rezada trimestralmente, a pregação é fácil de decorar: “deixe uma bacia de água na sala, uma toalha úmida no quarto”.

É isso em todos, todos os meios de comunicação. Em todos os jornais, no maior do Brasil, no com mais classificados, no “mais antigo da cidade”, no “a serviço do Brasil”. Em todas as redes de televisão, na com maior audiência, na do bispo, na do baú.

Nas redações, o texto da toalha molhada deve ficar num arquivo chamado “modelo clima seco”, mas o G1 foi além e fez um especial, que como vemos acima, é uma jóia do jornalismo de e para a classe média motorizada: “No trânsito, não tem jeito. Se há poluição, é melhor fechar os vidros e ligar o ar-condicionado. A fumaça de carros e caminhões parados no trânsito causa mais irritações nas vias aéreas do que o ar-condicionado”

É o milagre da construção textual que isenta o leitor de culpa. Você está no trânsito poluindo e acabando com sua própria respiração, sente irritação, e qual é a recomendação do portal da Rede Globo: fechar os vidros e ligar o ar-condicionado. O ar público está ruim? Liga o ar-condicionado particular! É a privatização do oxigênio.

A Folha de S. Paulo também subiu um degrau na mesma escada. Dia desses, junto à tradicional reportagem “XY de umidade. Pendure toalha úmida” havia a foto de três surfistas à beira-mar e o texto recomendava a ida ao litoral, onde a umidade é maior. Beleza pura! Todo mundo para Santos (quer dizer, a Folha recomendava Guarujá)!

Será que a umidade depende exclusivamente das chuvas?

Será que foi sempre assim? Quando a cidade tinha ampla cobertura vegetal não chovia 30 dias as pessoas não conseguiam dormir? Quando o transporte motorizado individual não dominava todo o espaço público os narizes das crianças sangravam?

Será que o clima seco tem a ver com a poluição? Será que no interior de São Paulo e Centro-Oeste do país tem a ver com as queimadas das plantações do aclamado combustível “limpo”?

Nada disso é sequer mencionado. Afinal, para que serve um repórter? Para dizer que faz tantos dias que não chove? A cidade há semanas com um clima intolerável e quem trata do assunto na mídia? A garota do tempo!

As pediatrias com filas para inalação e a prefeitura faz o quê? Convoca os secretários para pensar num plano emergencial? Propõe restrições à emissão de poluentes? Não, ou omite-se – o site do Centro de gerenciamento de emergências de São Paulo, por exemplo, apenas informa a previsão do tempo. Ou faz coro com as recomendações médicas: pendurar toalha úmida na porta da sala.

Relacionado:
Todo ano a culpa é do clima, artigo, Vá de bike!

Written by panopticosp

julho 22, 2008 às 11:46

14 Respostas

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  1. E o efeito da queimada das plantações do “combustível limpo” consegue ser ainda mais desagradável que o efeito da queimada do próprio combustível. Cidades pacatas, onde era possível escapar do inferno dos automóveis, agora são duramente castigadas pelo inferno das queimadas das plantações de combustível, ou seja, não estão mais escapando do inferno dos automóveis…

    Sérgio

    julho 22, 2008 at 14:44

  2. Um texto que eu escrevi dois anos atrás, coincidentemente num mesmo mês de julho, tem tudo a ver com esse assunto:
    Todo ano a culpa é do clima

    Willian Cruz

    julho 22, 2008 at 19:47

  3. A “privatização do Oxigênio” foi muito boa!! Privação da vida??

    Cassimano

    julho 22, 2008 at 23:48

  4. […] reprodução: G1 / descoberto pelo panóptico […]

  5. Os jornalistas não conseguem pensar criticamente porque eles simplesmente estão, como parte da elite econômica, dentro da “lógica do automóvel”. Basta lembrar as inúmeras reportagens recentes sobre o “caos no trânsito”. Quando se falava em usar transporte público, vinha a lenga-lenga de sempre: “não dá para usar esse TP ruim, se ele fosse melhor as pessoas deixariam o carro em casa”. Só que eles nunca souberam explicar o que é um “bom transporte público”. E com isso, acham natural que as pessoas “sensíveis” (idosos, crianças com asma, etc), morram enquanto o TP não melhora. E cadê os “ecologistas” que choram a cada árvore derrubada na Amazônia mas não dão a mínima pras mortes nas cidades causadas pelo automóvel? Mas é a mesma lógica do automóvel que domina a “opinião pública” – porque, afinal, ecologista também tem direito de ter carro. Eta classe unida, sô!

    Henrique

    julho 27, 2008 at 20:02

  6. […] A missa da toalha úmida Ato […]

  7. […] en el blog Panóptico (A Missa da Toalha Umida) como en el Apocalipse Motorizado (A Cidade está Podre) han abordado esta historia de lavado […]

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  12. […] A missa da toalha úmida Gerador automático de […]

  13. Na verdade o planeta pede socorro!E daqui para a frente será um salve-se quem puder!Até quando vamos viver assim?Esta é uma incógnita.Estamos ficando sem ar, literalmente.

    Rosana

    outubro 7, 2010 at 21:22

  14. […] A missa da toalha úmida Panóptico, Jul/2008 […]


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