Panóptico

Túneis, Poluição, Ossos

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Direitos reservados. Alexandre Orion. ossário.net.

Programas do estilo “As Maravilhas da engenharia mundial”, em destaque nos canais de TV que vendem conhecimento express trazem maravilhosas pontes, impressionantes viadutos, monstruosos túneis e tecnológicas rodovias como exemplos da magnitude do conhecimento do Homem. Entrecortar montanhas, cavar sob canais, transitar sobre rios. O poder do cérebro desenvolvido e do dedo opositor desse animal é infinito.

Seu melhor amigo, o automóvel, está quase sempre por trás destas grandes obras da engenharia moderna; quando não, estão seus amigos, petróleo e territórios. Na cidade, o ar, a água e a vida vêm depois. Árvores, morros, lagos e rios existem muitos. Removamo-os! O trânsito precisa fluir, é preciso ligar um vazio ao outro, ligar condomínios fechados a office buldings, shopping centers a mega stores, ligar uma garagem a outra garagem, ligar um subsolo ao outro, um congestionamento ao outro.

Durante o dia, os cavaleiros do apocalipse motorizado marcham lentamente; nas madrugadas, em alta velocidade. Em qualquer horário, espalham o medo por onde passam. Como em qualquer batalha, a batalha do trânsito entrega a dor dos ferimentos, a tristeza das seqüelas e a tragédia da morte violenta a milhares de famílias. Pedestres, ciclistas, qualquer um que não vista a armadura de aço, porém não consegue se manter alheio ao conflito e é uma potencial vítima, um alvo civil.

Seres mortos por falta de ar limpo é o lado menos visível desta guerra. Os mais vulneráveis, obviamente, morrem em maior quantidade. São os filhotes, eles crescem com pulmões sujos e os narizes entupidos, trancados em casa e em escolas, sofrem de alergias. Seus pais desperdiçam horas de carinho no trânsito, a rua é um lugar perigoso e as outras crianças também estão em suas casas com a TV ligada. Para uma minoria, o carro faz parte da rotina, de um espaço fechado ao outro, são levados do inglês para a natação, da escola para a praça de alimentação, semanalmente para playland o shopping center.

Os cavaleiros do apocalipse motorizado respiram o mesmo ar que todos os demais seres. Filhotes da classe média possuidora de convênios médicos e filhotes da periferia desarborizada amontoados em UBSs (Unidade Básica de Saúde) lotadas respiram o mesmo ar. Os cavaleiros galopam com a chave da culpa por mortes desligada pelo grupo indústria automobilística quebradora de recordes + agências de publicidade auto-regulamentadas + governo omisso e sua busca por maior PIB. Os pedetres e usuários do transporte público, por sua vez, contam com o mesmo grupo de desligamento: a indústria promete status; propagandas, sucesso em forma de mulheres, amigos, sol e virilidade; governos, a idéia de que é possível adquirir direitos comprando produtos.

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Direitos reservados. Alexandre Orion. ossário.net.

Esta lógica que criminaliza o transporte público e humilha seu usuário, fica bem resumida no trabalho de Alexandre Orion. Num mundo sujo, com lugares desabitados, sem serventia outra senão a de servir e venerar o automóvel, o maior desaforo é perceber estes locais, estar neles desarmado, caminhar por eles. Quando Alexandre, mais do que estar desarmado de um automóvel nestes locais, propõe realizar atividades humanas milenares que buscam pensar o ser, como o desenho, o afronte é evidente.

Seus desenhos de caveiras não utilizam tintas, cores ou relevos. Neste local morto que é o túnel de uma grande cidade, desenhar figuras de morte utilizando panos brancos é uma desobediência intolerável. O caminhão-pipa é chamado para lavar e apagar este cemitério de rostos.

Tão interessante quanto seu trabalho foi a reação oficial, que promoveu a limpeza dos desenhos (que de qualquer forma desapareceriam com as novas camadas de poluição por vir). A ação da prefeitura que lavou o túnel para “cobrir” a sujeira dos desenhos, conseguiu resumir a ordem geral: deixar poluir, deixar morrer e matar, apagar as expressões em contrário. O artista diz em seu relato, “eles anularam a mensagem criando uma grande área limpa e deixando o restante do túnel sujo como deve ser. O crime passou a ser outro: censura! Rs”. Desta “limpeza”, Alexandre gerou mais uma obra, produziu uma tinta pigmentada com poluição (partículas sedimentadas da lavagem).

“Estas ruas são feitas para dirigir tão rapidamente do trabalho para casa e vice-versa. São ruas para passar, não para viver” (André Gorz, A ideologia do automóvel). Citação na página principal de ossário.net.

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Written by panopticosp

agosto 8, 2007 às 19:38

Publicado em cultura urbana, transporte

5 Respostas

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  1. Muito interessante o seu blog, gostei muito e voltarei mais vezes!
    Um abraço!

    atmj

    agosto 10, 2007 at 6:34

  2. De medidas extremas está se fazendo o Mundo, e essa Página parece-me atenta a isso, acerca de um dos pilares da showciedade: o transporte – mormente o urbano.

    uaíma

    agosto 10, 2007 at 8:10

  3. Belo texto!

    léo

    agosto 21, 2007 at 18:41

  4. Gostei muito do texto. Quanta hipocrisia!

    Essa é a minha primeira visita e espero voltar mais vezes. =)

    Isabella

    agosto 27, 2007 at 22:02

  5. […] a pichação inversa no paredão debaixo do viaduto Washington Luis, utilizando nada além de um pano e água. Molhando […]


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